"Há uma geração que esqueceu que é cidadã e virou apenas consumidora”
Um papo sobre ESG pé no chão e Brasil, com Ítala Herta, estrategista de impacto.
Por Verena Pessim | 7 de março 2025
Fotos por: Arthur Nobre/MM
Eu acredito muito em ações coletivas. Precisamos urgentemente formar uma frente de resistência, de pensamento diverso, inclusivo e que coloca o Brasil como protagonista das discussões de impacto mundiais, já que desafios sociais e ambientais temos aos montes.
E digo isso não como forma de excluir a discussão internacional, pelo contrário, precisamos fazer cada vez mais alianças internas, entre as regiões do Brasil, entre periferia e centro, com a irmandade latino americana, mas também externas, com o restante do mundo.
Como a atriz Fernanda Torres tem dito em muitas entrevistas nesta época de Oscar, Globo de Ouro e de projeção do País mundo afora, "o Brasil não pode ser uma ilha porque falamos português no meio de países que falam castelhano”. A gente produz muita coisa boa, entre elas cultura, design, tecnologia e as pontes precisam ser construídas e fortalecidas.
E é justamente sobre isso que a nossa convidada de hoje, Ítala Herta, começou o nosso papo falando. Segundo ela, “é importante perceber quem vai se pronunciar para fazer algo pelo País, independente de decisões ou especulações ideológicas de outro país”.
Sobre nossa entrevistada
Ítala tem mais de 15 anos de atuação em inovação social, impacto e economia criativa, sempre com foco nas interseções entre diversidade, equidade e inclusão no Brasil. Cofundadora do Vale do Dendê, criou a primeira aceleradora de afroempreendedorismo no Nordeste brasileiro e o Festival Afro.Futurista.
Em 2020, fundou a DIVER.SSA, plataforma de bem-estar mental emocional para mulheres empreendedoras, Alumni IVLP desde 2019, foi uma das oito lideranças brasileiras convidadas a participar do Programa de Liderança de Visitantes Internacionais - IVLP, intercâmbio profissional em seis cidades dos EUA pelo U.S. Department of State - United States Department of State, e foi eleita uma das 50 pessoas mais criativas do Brasil pela Revista Wired. Também atua no Comitê de Diversidade da Ambev, e é líder na Mesa.
Depois dessa introdução muito inspirada, deixo com vocês trechos literais desse papo incrível. Espero que te inspire também!
ESG e Brasil
Verena (Meio): Como você explicaria ESG para uma pessoa leiga?
Ítala: Antes de consolidar essas três grandes agendas em uma sigla é preciso perguntar: o que é sustentabilidade, governança e social para você? Essas palavras bonitas em inglês são o que vocês já fazem, e resumem o significado de ESG. É preciso contextualizar as siglas, evitar falar inglês em alguns ambientes e ter a humildade de explicar o que é isso. O mais intuitivo, eficiente e simples é o mais revolucionário. É preciso conseguir responder a pergunta do que é ESG para uma senhora de 70 anos de uma comunidade.
Verena (Meio): Qual a sua visão sobre um ESG e Brasil?
Ítala: Em uma experiência internacional, inclusive com a Embaixada da Bélgica durante uma missão econômica no Brasil, eu ressaltei que não iríamos ensinar nada que não soubéssemos, nem ouvir nada que não conhecêssemos. O Brasil possui inteligência, criatividade e muitos desafios para prototipar soluções de forma única. Brasileiros contextualizam as coisas às suas realidades, mas essa habilidade ainda faz falta nos meios corporativos.
Verena (Meio): Por que você acha que isso acontece?
Ítala: O Brasil é visto como um público que precisa ser beneficiado, um país pobre que precisa ser desenvolvido. As pessoas querem nos ajudar, mas esquecem que somos protagonistas. Existem excelentes profissionais que não passaram por grandes escolas de negócio mas criaram soluções para seus desafios. Essas pessoas não são chamadas para as conversas. Não investimos, não abrimos espaço, nem escutamos essas inteligências marginalizadas. Descredibilizamos o que já foi feito, e marcas querem criar coisas do zero, o que é péssimo. Há dificuldade em considerar a autoria.
Nos sensibilizamos por tragédias do mundo todo, mas não por contextos reais do nosso lado. É preciso um reconhecimento de realidade, de contexto. As soluções e as pessoas especialistas estão aqui, precisando estar nos lugares certos e ter estrutura para formar seus talentos. É importante perceber quem vai se pronunciar para fazer algo pelo País, independente de decisões ou especulações ideológicas de outro país.
"O Brasil possui inteligência, criatividade e muitos desafios para prototipar soluções de forma única. Brasileiros contextualizam as coisas às suas realidades, mas essa habilidade ainda faz falta nos meios corporativos."
- Ítala Herta
Marcas, governo e pessoas neste contexto
Verena (Meio): Como você vê o posicionamento das marcas e pessoas nesse contexto?
Ítala: Uma camada da sociedade está fazendo, independente de quem está no poder. Outra camada, da iniciativa privada, é influenciada por especulações ideológicas. Há muitos interesses envolvidos, e isso traz insegurança para tomar decisões. Essa camada também faz parte da sociedade e deve ter compromisso. Reflita sobre o que você é e onde está, para além de um consumidor.
Verena (Meio): O que você observa no geral?
Ítala: Há uma geração que esqueceu que é cidadã e virou consumidora, mas está despertando. Empresas não estão correspondendo, e precisaremos de aparatos legais. Lideranças corporativas precisam conversar com o poder público e mediar conflitos. O diálogo é a ferramenta mais importante. O poder público também precisa se preparar para cooperar com a iniciativa privada. As coisas estão se estreitando e precisaremos dessas interlocuções.
Verena (Meio): E como você vê a relação entre a iniciativa privada e os governos, especialmente os de extrema direita?
Ítala: Há um paradoxo com a ascensão de governos de direita. É um privilégio se eximir de conversas difíceis. É importante abrir pontes com o governo, buscando caminhos no rigor legal e em cooperações internacionais com países que não estão alinhados com esse pensamento. Há agências internacionais e fundos globais disponíveis. Falta esforço e coragem para buscar essas cooperações. O que pode ocorrer é uma ilha política, o que é péssimo para a economia. É preciso parar de reagir e começar a prevenir.
Verena (Meio): Como você vê a questão da prevenção versus reatividade nas empresas?
Ítala: Muitas empresas reagem, mas não previnem. Há orçamentos para crises de imagem, mas falta orçamento para pesquisa e prevenção. Gastamos dinheiro à toa, sendo incoerentes. É preciso investir em educação desde a infância para alcançar a excelência. O dinheiro não resolve tudo; relações, confiança e inteligência são importantes.
O que podemos fazer, e quem são as pessoas protagonistas entre cidadãos conscientes?
Verena (Meio): O que as pessoas podem fazer na prática?
Ítala: Não se trata apenas do que podemos fazer, mas do que podemos parar de consumir, aceitar ou concordar. É sobre tomar boas decisões em relação ao impacto no entorno. Mulheres, sobretudo negras e indígenas, estão distantes dessas discussões e precisam tomar as decisões mais conscientes. Há caminhos para mover as tensões, que são necessárias para mudar. Não tenho que ocupar minha cabeça e tempo apenas com medo da polarização, mas preciso aprender a conviver e ser propositiva em meio a ela. É preciso provocar e cobrar mais de quem tem o poder e o privilégio de se eximir dessas discussões.
"Não se trata apenas do que podemos fazer, mas do que podemos parar de consumir, aceitar ou concordar. É sobre tomar boas decisões em relação ao impacto no entorno."
Ítala Herta
Verena (Meio): Em relação ao consumo, o que podemos fazer?
Ítala: O capitalismo desterritorializa, tira a identidade e faz esquecer quem somos. Se esquecermos que decidimos as coisas, não faremos nada por nós. Há muito o que fazer, desde decisões relacionadas ao consumo até a coerência em discussões. Decidir não rir ou ignorar falas racistas, machistas ou piadas transfóbicas são decisões importantes. É cansativo, mas temos que ser maioria e aprender a corrigi-las ou encaminhar para as instâncias corretas cada atitude excludente ou discriminatória, é com rigor sim que elas devem ser tratadas.
Verena (Meio): Quem são as pessoas protagonistas desse movimento de cidadãos conscientes?
Ítala: O movimento de mulheres negras do Brasil é um dos mais bem-sucedidos do mundo. Sueli Carneiro e outras ativistas pensaram políticas e ações que mudaram o País. O capital intelectual do País, das comunidades tradicionais e populares, a Academia Brasileira, sociólogos, filósofos, cientistas sociais e pesquisadores estão fazendo a diferença. O sistema de saúde mais estruturado do mundo é o nosso. Há muita gente fazendo a muito tempo por nós, não só quem tem muitos seguidores.
Verena (Meio): O que falta, então?
Ítala: As pessoas esquecem que os países mais ricos investiram em pesquisa, educação e reparação econômica. É preciso criar um modelo de distribuição de riqueza, não só monetária, mas de acessos, dignidade e direitos. Minhas referências são aqueles que fazem governança sem dinheiro, encarando conversas difíceis. A solução para o nosso país não é o empreendedorismo, mas o conhecimento de cidadania. É preciso refletir como cidadão e como parte da sociedade. É preciso acolhimento psicológico e emocional, pois empreender é duro. É preciso uma reforma tributária justa e vencermos sobretudo a pobreza e consequentemente a informalidade.
"O movimento de mulheres negras do Brasil é um dos mais bem-sucedidos do mundo. Sueli Carneiro e outras ativistas pensaram políticas e ações que mudaram o País."
- Ítala Herta.
Na foto: Sueli Carneiro.
A DIVER.SSA - bem-estar mental e emocional para mulheres empreendedoras.
Verena (Meio): Poderia falar sobre a DIVER.SSA?
Ítala: A DIVER.SSA surge de uma urgência. Tudo que construí foi a partir do que me foi negado. Depois de anos de experiência, criando métodos e liderando operações, senti a necessidade de me dedicar à agenda das mulheres. Foi duro, mas precisei me preparar. Desenhei uma rede de apoio profissional e defini mentoras. Comecei a investir em conhecimento e acolhimento psicológico.
Verena (Meio): Qual o foco da DIVER.SSA?
Ítala: Era natural que a maioria dos afroempreendedores fossem mulheres. Muitos programas que liderava tinham mulheres como público beneficiado. Percebi que precisavam de mais atenção. Descobri junto a minha parceira Bia Bem, que essas mulheres precisavam de dinheiro e de uma rede de apoio. Criei o método de acolhimento estratégico, baseado em três pilares (Autoconhecimento, Autoconfiança e Autogestão). A DIVER.SSA surge como uma empresa, uma edtech (empresa que une tecnologia e educação para facilitar e melhorar o processo de aprendizagem), com uma tese de investimento para ser uma plataforma de bem-estar mental e emocional para mulheres empreendedoras.
Verena (Meio): Como a DIVER.SSA atua?
Ítala: Fizemos um projeto com o Itaú, focado em mulheres negras nortistas e nordestinas e indígenas, com acolhimento psicológico e emocional. Fomos pioneiras e inspiramos outros movimentos de aceleração. Criamos um modelo de mensuração de sucesso para essas mulheres. A Diversa passou por uma reestruturação, com novas lideranças. A iniciativa existe para transferir renda e mudar realidades. Não aceleramos negócios, aceleramos mulheres. A DIVER.SSA continua se estruturando.
Verena (Meio): Como o design e a tecnologia contribuem para a DIVER.SSA?
Ítala: Sempre apostei em ter uma designer ao meu lado para viabilizar as coisas. Testamos o método com mulheres e conseguimos insumos para priorizar. A designer Samille Sousa, foi uma dessas profissionais que nos apoiou bastante na estruturação das nossas ferramentas. O design é o que precisamos, mas não sabemos o que é. Falta conectar pessoas certas com quem já fez coisas incríveis. É preciso testar, prototipar e ouvir as pessoas.
Vamos falar sobre design
Verena (Meio): Qual a sua visão sobre o design?
Ítala: Uma boa pessoa designer precisa saber prototipar, fazer pesquisa e entender minimamente sobre as suas realidades. É preciso pensar primeiro no problema e não na solução. É preciso tomar suco de Brasil. A função da pessoa designer é resolver um problema. Inovar é resolver um problema, não é ser inédito. As ideias mais bem-sucedidas vêm de pessoas que simplificam as coisas.
Verena (Meio): Isso me lembrou a frase do Uri Levine, co-fundador do Waze, "Se apaixone pelo problema e não pela solução". Ele tem até um livro com essa frase. Agora voltando, como podemos usar o design para o bem?
Ítala: Quando atrelamos o design a um movimento com compromissos claros, só temos a ganhar. Temos que nos empoderar dessas ferramentas. É preciso reconhecer as pessoas que não estudaram, mas que são essenciais. O design é a priorização, entender as pessoas e o contexto. É isso, é preciso ser apaixonado pelo problema e não pela solução.
"É preciso tomar suco de Brasil. A função da pessoa designer é resolver um problema. Inovar é resolver um problema, não é ser inédito. As ideias mais bem-sucedidas vêm de pessoas que simplificam as coisas."
- Ítala Herta
Qual o caminho do meio?
Verena (Meio): Qual o caminho do meio para você?
Ítala: O caminho do meio remete a um lugar funcional, de utilidade, um instrumento que transversaliza, que existe para unir, viabilizar, consolidar ou espalhar. É o lugar útil para essa agenda.
Verena (Meio): É o que a gente diz aqui, usar a tecnologia e o design como meio.
"É o que a gente diz aqui, usar a tecnologia e o design como meio."
Verena (Meio)